quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

"O MUNDO EM QUE VIVI" - ILSE LOSA

DESAFIO AOS MEUS ALUNOS DE 8ºANO
Depois de lidos alguns extratos da obra, em sala de aula, fica o desafio para estes dias de interrupção letiva. 
Na passagem que se segue (manual Plural, páginas 157/158), Rose conheceu Paul. Se ela tivesse um diário, o que teria escrito? Imagina que és a Rose e escreve uma página do seu diário referente a este dia tão importante para ela.

"O meu tempo com Paul foi o último sol antes da trovoada, o céu claro e o aroma das flores e das florestas.
Começou numa tarde de inverno em que uma colega de nome Waltraut me apresentou Paul Marten. Subimos, os três, o monte. Olhei de soslaio para o rapaz: era mais alto do que eu, vestia um casaco claro com gola de astracã. A expressão um tanto infantil acentuava-se pelos lábios um pouco puxados para a frente como os dos meninos quando amuam. Pousado sobre o cabelo louro, encaracolado, o boné vermelho dos alunos do último ano do "gymnasium".
O café, no cimo do monte, estava apinhado de gente e o ar engrossado pelo fumo dos cigarros. Um trio tocava música, e os criados corriam, atarefados, de um lado para o outro. Conseguimos uma mesa junto à janela, de onde se via a cidade com a cúpula dourada da catedral e o campanário pontiagudo da igreja gótica. Sentada defronte de Paul, apercebi-me que ele não tirava os olhos de mim. Virei a cabeça para o lado e olhei para fora. Pensei que decerto me achava feia, e isso arreliava-me.
Waltraut contava coisas várias, mas notei que Paul não escutava. De repente dirigiu-se-me:
– Em que ano anda?
– Isso interessa-lhe?, repliquei.
– Por que é que me fala dessa maneira?
– Porque me apetece, respondi desabridamente.
Mais tarde, ao evocarmos este primeiro encontro, divertíamo-nos sempre de novo. Recordo aquela tarde em que Paul me imitou fazendo cara carrancuda: "Porque me apetece". Era uma tarde de primavera e as cerejeiras estavam em flor. Tanto nos rimos que acabámos por nos encostar a uma das árvores e a leve chuva de pétalas brancas, que dela se desprendeu, cobriu-nos como no inverno nos cobriam os flocos de neve.
Anoitecia e arrefecera quando descemos do monte. Caminhávamos depressa. Os dois levaram-me a casa e, ao despedir-se, Paul apertou-me calorosamente a mão:
– Foi uma linda tarde.
Na manhã seguinte, ao sair de casa, fiquei surpreendida ao avistá-lo.
– Não me esperava, pois não? Os olhos sorriam-lhe.
Caminhámos lado a lado, perturbados e sem falar.
Daí em diante Paul esperava-me todos os dias para me acompanhar à escola ou para darmos um passeio. Waltraut sabia-o e, certo dia, disse-me:
– Coisas da vida.
Absorvida pelo amor nem refleti naquelas palavras. Todos os meus pensamentos giravam em volta de Paul e renunciar a ele nem sequer me ocorreu.
– Por que razão deixaste de gostar de Waltraut?, perguntei-lhe.
– Porque gosto de ti.
– E porque é que gostas de mim?
– Porque és tu.
"Porque és tu", disse, e nada mais. Vi-lhe, porém, nos olhos a chama quente e nem as palavras mais belas teriam sido capazes de me dar maior felicidade.
Mas Paul vivia em conflito por minha causa, e eu sabia-o. Habitava um apartamento com a irmã, pois haviam-lhes morrido os pais. Ora a irmã, bastante mais velha do que ele, simpatizava com o movimento nacional-socialista, e eu era judia. Vi-a pela primeira vez numa tarde em que andava a passear com Paul.
– É a Rose, de quem te falei, disse-lhe Paul.
Estendeu-me a mão e, logo em seguida, lembrou ao irmão um convite de uma família deles conhecida:
– Não te esqueças, Paul, de ser pontual.
Compreendi que queria fazer-me sentir que o mundo de Paul não era o meu. […]
Mas depois tiraram-nos o chão debaixo dos pés, excluíram-nos do povo alemão, transformaram-nos num "problema", um problema para os outros, um problema para nós próprios."

Ilse Losa, O Mundo em que vivi. 32.ª ed. Porto: Afrontamento, 2011.  [com supressões]